5 de abril de 2011

A verdadeira cruz

Vinícius B. Gomes

Era noite. Uma procissão vestida de tradição da mais original desfilava em São João Del-Rei. A figura principal estava no alto, erguida por homens que carregam, literalmente nos ombros, a tradição familiar do preceito religioso. A intrigante imagem de Nosso Senhor dos Passos e sua cruz era conduzida para o encontro com outra imagem com aspecto doloroso semelhante: Nossa Senhora.
Estandartes, cruzes, turíbulos, velas e tochas. Tudo isso complementando a imagem pesada de uma tradição religiosa de solene rito. Entre cantos em latim e orquestras que emitiam sons melancólicos a imagem parava nos chamados "passinhos". Cada um desses parecido com uma pequena capela anexada a casas históricas.
A dor era o foco. Não havia espaço para rir. Havia espaço para rezar, cantar, organizar o cortejo ou documentar, como eu fazia.
Os olhares eram inevitavelmente voltados para as figuras de dor bem delineadas em imagens fortes. O olhar de dor de Jesus e sua mãe foram expressos em esculturas que remetem a um sofrimento sem igual.
Mas para quem quer basta olhar ao lado. Olhar para um outro possível que remete ao foco inicial e o questiona. Olhar pro lado pode fazer-nos olhar com consciência para frente. É preciso olhar tudo.
Eis que ao meu lado vejo uma pessoa intrigante: não vestia terno, nem túnica preta ou roxa, nem paramento clerical, tampouco uma roupa nova e bonita. Sim, ele era diferente de todos que seguiam aquela procissão.
Talvez fosse parecido só com a imagem. Usava um manto. Talvez o único que tivesse para se aquecer. Era pobre. Sua cruz era um cajado que segurava. Não saberia dizer se ela sofria. Mas dá para sofrer só de colocar-se em sua pele. Era ele o único diferente que mais se assemelhava aquela procissão.
Assim como Jesus ele era o rejeitado ali. Assim como Jesus ele carregava uma cruz: a de ser execrado da sociedade.
Ele não pediu esmolas, mas olhava com um olhar profundo aquilo que passava a frente dele. Se benzeu escorado na parede como se fosse espremido pelo cortejo.
Mal sabia ele que o homem representado naquela imagem veio para ele e por ele. Talvez ele não soubesse que era mais bem-aventurado que todos os outros que caminhavam ali. Mal sabia ele que a nobreza de seu cobertor era maior do que as luxuosas capas dos cléricos cheios de pompa.
Foi vendo o mendigo observador que vi que é preciso descer os olhos das imagens para nossa realidade. Afinal, é nela, nos olhos do irmão, que está Jesus sofrendo com as cruzes de nossos dias.
Que Deus nos ilumine e nos guie para enxergar para além de nossa limitada visão.
Nos faça menores e mais sensíveis do que maiores com falsas impressões.
Jesus já desceu do andor naquela rua.
Aliás, ele nunca subiu.

2 comentários:

  1. Viniciu
    Como eu torci para voce ser um sacerdote pois tem o dom da observação e da homilia em sua vida.
    mas sei que não recebeu este dom.
    S´´o de estar entre os jovens e poder catequisar assim já basta.

    Um abraço carinhoso
    com carinho MOnica

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  2. "Que Deus nos ilumumine e nos guie para enxergar para além de nossa limitada visão", estava retirado em um seminário para leigos quando vi sua percepção neste texto. Que tipo de pessoas nós somos ou queremos ser, quem será o nosso irmão?
    Fiquei comovido e feliz por ver que ao meu redor encontra-se pessoas que tem uma visão certeira de nossa realidade e ainda possue um ardor extremamente missionário. Parabéns meu amigo Vinicius e obrigado pela caminhada.

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